Medo e esquecimento em Saweto
I. Sobreviventes
II. Impunidade e tráfico de madeira
III. A ameaça continua
IV. Guardiãs do bosque
V. O plano inconcluso

Medo e esquecimento em Saweto

Por Anthony Quispe Oré e Milagros Salazar Herrera

Depois do assassinato do líder ambiental Edwin Chota e de três dirigentes da comunidade Alto Tamaya-Saweto em Pucallpa por madeireiro ilegais, as mulheres deste povo ashaninka na fronteira do Peru com o Brasil são as que defendem os bosques. Elas se enfrentam ao crime organizado ante o medo dos homens de serem assassinados como os seus companheiros e a fraca proteção do Estado que ainda não concreta as melhoras na infraestrutura e na execução de projetos sociais que deveriam estar concluídos desde 2015.

A cinco anos do terror que Saweto viveu, Convoca.pe, como parte do projeto colaborativo ‘Terra de resistentes’, chegou a este povoado amazônico, localizado na região Ucayali, para conhecer a luta destas mulheres que vivem em constante perigo por defenderem as últimas árvores na fronteira.

I. Sobreviventes



— Quanto tempo vocês demoraram para chegar até Pucallpa (a capital de Ucayali)? 
— Foram, três dias (…). viajamos de canoa dia e noite (…) sem descansar— narra Julia Pérez, uma mulher de 42 anos de idade, em pé num dos cantos da Casa Comunal de Saweto com os pés descalços.
— Era de noite, não era perigoso?
— Não, não tínhamos medo, a senhora Ergilia, a sua filha, o motorista e eu, os quatro.
— Durante a viagem, pararam para comer?
— Nada, somente depois tivemos apoio para comer.
— Nessa viagem, uma das viúvas estava grávida. Quem era?
— Eu, nesse tempo tinha sete meses, o pai dele me deixou quando eu estava grávida.
— E como fez para viajar até Pucallpa?
— Eu fui assim mesmo, o que podemos fazer? Quando você quer você faz, nada me deteve.
— Como se chama o seu filho?
— Edwin.
— Como o pai dele?
—Sim.

Grávida e com muito medo, Julia Pérez navegou o rio durante três dias desde Saweto até a cidade de Pucallpa depois de ficar sabendo que mataram o seu esposo Edwin Chota e a outros três líderes da comunidade. Julia ainda lembra o grito de um sobrevivente daquele episódio de terror.

— Mataram o Chota, mataram o nosso chefe!—gritou Jaime Arévalo, representante do Alto Tamaya-Saweto, por volta das seis da tarde de 5 de setembro de 2014. Ele e a sua esposa Hilda Cushimba quase não podiam respirar quando chegaram para avisar a sua comunidade que Edwin Chota, Jorge Ríos, Leoncio Quintisima e Francisco Pinedo, tinham sido assassinados.

Julia Pérez junto com o seu novo companheiro e seus filhos. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

Estefanía Arévalo, a filha de Hilda e Jaime, deu o aviso para a comunidade porque seu pai “estava nervoso, não podia caminhar”, conta. Ela herdou o peso da morte de um homem devastado e devia contar para as viúvas sobre o horrível cenário que encontraram seus pais numa quebrada a oito horas de caminho a Apiwtxa, a comunidade irmã de Saweto no Acre, Brasil. 
 
Hilda Cushimba narrou para a Procuradoria que estava carregando o seu bebê nos braços quando seu esposo Jaime Arévalo descreveu o que havia na ladeira: ossos perto do rio Putaya com urubus que roíam as roupas, botas e sacolas que boiavam num poço de água. Assustados, decidiram voltar para Saweto por outra rota diferente do caminho que fizeram os quatro dirigentes assassinados.

“Meus sogros (…) conseguiram ver um cadáver, não puderam reconhecer de quem se tratava nem a roupa que tinha, se assustaram e voltaram imediatamente para a comunidade”, descreveu Alex Ríos, genro de Jaime Arévalo, no seu depoimento para a Procuradoria de Ucayali. Ele narrou para as autoridades que acompanhou os seus sogros até a comunidade nativa de Apiwtxa, em 29 de agosto de 2014, porque iam participar em uma assembleia nesse lugar no Brasil para organizar a defesa dos bosques. 

Jorge Arévalo tinha se adiantado para a reunião em Apiwtxa e quando voltou pela mesma rota para saber o que tinha acontecido com os outros líderes da sua comunidade que não chegavam, se encontrou com aquela cena de espanto.

Quando Estefanía Arévalo começou a descrever para as outras famílias da comunidade o que o seu pai viu, o medo começou a se expandir. A lembrança dos fatos e as ameaças prévias, apontaram como responsáveis destas mortes os madeireiros ilegais que estavam perto de Soweto. As famílias começaram a fugir para Apiwtxa, no Brasil, e para Pucallpa, no Peru. Diana Ríos, filha de um dos outros líderes assassinados e anterior companheira de Chota, disse que Alex Ríos, o genro de Arévalo, nunca mais voltou para o povoado “de medo”.  

Hoje em Saweto sobrevivem 29 famílias, das quais somente 20 permanecem na comunidade ashaninka, as outras vão e vêm a outros lugares a trabalho ou por motivos familiares, garante Karen Shawiri López, a atual chefe desta comunidade de 28 anos de idade.

Desde o assassinato dos quatro líderes, as mulheres encabeçam a luta de Saweto contra o tráfico de madeira. A maioria dos homens do povo preferiu dar um passo atrás por medo a que acabem com as suas vidas. Por isso, depois da tragédia, Ergilia Rengifo López, viúva do assassinado Jorge Ríos, se tornou a primeira mulher eleita como chefe desta comunidade ashaninka.

Quando dizem [os madeireiros] para conservar o nosso bosque, eles não gostam (...). O que fazem? Destroem porque não vivem [aqui]...voltam para a sua terra, não se interessam

-Teresa López, idosa da comunidade de Saweto.

No meio do desconsolo, a primeira missão de Ergilia, foi liderar uma comissão de viagem até Pucallpa, a capital de Ucayali, para denunciar a morte dos dirigentes. “Nem tempo para chorar havia”, lembra. Era de noite, Ergilia decidida disse para a sua filha Diana: “Você fica aqui, se me acontecer alguma coisa você se comunica lá na rádio, se não apareço em cinco dias”, descreve Diana, enquanto veste sua cushma azul e desenha linhas vermelhas no seu rosto em frente de um espelho com moldura plastificada.

A comitiva liderada por Ergilia esteve integrada por sua filha mais velha, Juana Ríos, viúva de Leoncio Quintisima e Julia Pérez, viúva de Edwin Chota, com sete meses de gravidez. As mulheres chegaram em Pucallpa depois de três dias: “até de noite viajamos, mas se chovia, dormíamos onde havia casa”. “No primeiro dia dormimos na praia de Ucayina, na madrugada escutávamos motor [advertem que é um som de ameaça] e uma noite depois numa casa no povoado Nova Amazônia Tomahao, a dois dias de Saweto”, lembra Ergilia.
 
Para chegar a Saweto desde Pucallpa de canoa, os moradores podem demorar três dias com o rio caudaloso no período de chuva e até sete dias na época da seca. De barco com um motor de 65 cavalos de força desde o porto de Pucallpa, Convoca.pe fez uma viagem de 30 horas até a comunidade ashaninka. Navegamos um dos maiores tributários do rio Amazonas, o Ucayali, até navegar por seus afluentes Tamaya e Putaya, desviando dos pedaços de madeira. Durante a viagem, apareceram diferentes barcos, os que transportavam pessoas, os que transportavam gasolina e os que transportavam a cobiçada madeira que sai dos bosques.

As mulheres da comunidade de Saweto com os seus filhos. Da esquerda para a direita: Ergilia Rengifo, Teresa López e Diana Ríos. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

A comitiva de Ergilia fez esta mesma rota mas ao contrário na busca de ajuda e de uma justiça que ainda é dolorosamente esquiva. Até hoje o caso continua na Promotoria de Ucayali sem punição aos responsáveis pelo assassinato dos quatro líderes deste povo da Amazônia peruana, cada vez mais ameaçada.

Viagem a Saweto

A cada dia que passa, o Peru perde 427.2 hectares de bosques amazônicos, segundo o governamental Serviço Florestal e de Fauna Silvestre (Serfor). Somente durante 2017, cortaram no Peru 155 mil 914 hectares de floresta e segundo uma revisão histórica do próprio Serfor foi perdido 7.7 milhões de hectares de bosques, uma cifra que equivale a 6% do território peruano ou toda a extensão da região imperial de Cusco.

Em Ucayali, Madre de Dios, Huánuco e Loreto se concentrou o 60% de zonas desmatadas durante 2017. Nestas regiões opera o milionário negócio da mineração ilegal e o tráfico de madeira.

II. Impunidade e tráfico de madeira


Os diversos indícios apontam como supostos responsáveis do assassinato dos líderes de Saweto a cinco pessoas, entre eles o madeireiro brasileiro Eurico Mapes. Mas em 23 de fevereiro de 2018, o procurador que investigava o caso, Julio Reátegui, solicitou surpreendentemente o arquivamento da acusação contra quatro dos suspeitos. Nove meses mais tarde, em 19 de novembro de 2018, a Procuradoria Geral de Ucayali, mediante a disposição N°037, pediu retificar o polêmico pedido de Reátegui e ordenou que designe um novo procuradora para que emita um novo requerimento para ampliar o pedido de acusação contra os outros implicados. 

Pouco tempo depois, Reátegui designou o seu procurador adjunto, Otoniel Jara, para herdar o caso, quer dizer, o seu subordinado. Como resposta, na sexta-feira 1 de março de 2019, o advogado dos dirigentes assassinados, Óscar Romero, solicitou à Promotoria Provincial Corporativa Especializada contra a Criminalidade Organizada anular a designação do procurador Jara porque responderia à mesma postura do seu chefe.

Para Reátegui existem indícios necessários para acusar o madeireiro Eurico Mapes, mas não os outros quatro, de nacionalidade peruana, por suposta comissão do delito homicídio qualificado: Hugo Soria Flores, José Carlos Estrada Huayta, Josimar Atachi Félix e Segundo Atachi Félix.

“Não temos elementos de prova que os apontem. Uma coisa é o que os familiares dizem e outra coisa é provar isso, nem mesmo se pode estabelecer se o sujeito ou os sujeitos estiveram lá na data dos homicídios”, disse Reátegui para Convoca.pe 

Espera-se que nos próximos dias, o procurador Otoniel Jara cumpra com o pedido da Procuradoria Geral de Ucayali e amplie a acusação contra os outros quatro implicados no assassinato dos líderes de Saweto.

No caminho para Saweto encontramos madeira cortada na beira do rio. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

Enquanto isso acontece nos escritórios do Ministério Público de Pucallpa, na fronteira com o Brasil as viúvas de Saweto continuam vivendo no meio do bosque e do desamparo. Margoth Quispe, ex-defensora do povo em Ucayali e diretora legal do Programa Peru da fundação estadunidense Rainforest, garante que por medidas de segurança e “por recomendação do advogado”, é melhor manter em reserva para estas mulheres a situação das investigações porque elas continuam vivendo “com o inimigo ao lado”. Saweto fica a poucos minutos da comunidade de Putaya onde vivem os madeireiros ilegais acusados de assassinar os líderes.

Elas sabem que estão correndo risco: conheceram de perto as ameaças permanentes que receberam os que foram assassinados, quem foi, onde e quando aconteceu. 

“Eurico Mapes (o madeireiro brasileiro) é o único que ficava falando, mas também podem ser seus familiares (seu pai Adeuso Mapes) e o senhor (Juan Carlos) Estrada, porque ele tinha sua concessão (florestal) aqui”, diz Ergilia Rengifo López, acompanhada de Juana Pérez. Elas são as viúvas de Edwin Chota e Jorge Ríos, respectivamente.

Meses antes de ser assassinado, Edwin Chota tinha acusado como madeireiros ilegais junto as instituições do Estado a Eurico Mapes; o representante da empresa Eco Florestal Ucayali S.A.C, Juan Carlos Estrada Huayta, e a outras pessoas. Estas denúncias estavam respaldadas com fotografias das árvores derrubadas e a localização georreferenciada destes danos ao meio ambiente.

Chota tinha um enfrentamento aberto com Eco Forestal Ucayali S.A.C. devido a que esta empresa tinha uma concessão florestal superposta ao território ancestral de Saweto. Como vingança, Estrada Huayta acusou Chota de dedicar-se ao narcotráfico. 

Os animais fugiram, foram para longe

- Roger Shawiri e Guillermo Arévalo, idosos da comunidade de Saweto

Os esforços do líder desta comunidade ashaninka para defender o bosque chegaram a despertar o interesse das autoridades do Organismo de Supervisão dos Recursos Florestais (Osinfor) depois de vários anos de insistência. Chota sabia ler, escrever e tinha aprendido a lidar com a burocracia através de cartas, informes e denúncias.

Em 22 de maio de 2014, Chota e outros cinco membros da sua comunidade foram recebidos pelas autoridades de Osinfor na sede da Presidência do Conselho de Ministros, como consta em diversos documentos aos que teve acesso Convoca.pe. Pouco tempo depois, os funcionários marcaram com o líder de Saweto a data de supervisão para verificar a denúncia de desmatamento ilegal: 15 de agosto de 2014. Finalmente, Chota tinha sido escutado.

Aquela vez, a supervisão começou com a concessão florestal de Ramiro Edwin Barrios Galván e continuou em 25 de agosto com a inspeção das atividades de Eco Forestal Ucayali na que participou como observador o próprio Edwin Chota. A diligência durou até 29 de agosto em meio à insegurança e à incerteza. Três dias depois, em 1 de setembro, o líder amazônico foi assassinado a tiros.

A última denúncia de Chota sobre a depredação do bosque foi confirmada duas semanas depois da sua morte. Osinfor elaborou o informe de supervisão Nº 092-2014 com data 17 de setembro de 2014 onde informava que nas inspeções realizadas no mês anterior se constatou as atividades de desmatamento ilegal: o desaparecimento de árvores das espécies cedrão, cedro, lupuna, copaíba, ishpingo, estoraque, entre outras.

“Os fatos de aproveitamento não autorizado (desmatamento ilegal) são considerados graves pela quantidade de árvores mobilizadas e porque afetaram as populações naturais de espécies protegidas por dispositivos legais específicos (cedro, ishpingo e lupuna), sem a menor possibilidade de que na área se implementem medidas que permitam mitigar e/ou ressarcir os danos ocasionados ao patrimônio florestal”, aparecia no documento. Assim como essas árvores, Chota já estava morto. 

“Aquela vez, eu queria saber quem matou o meu pai, quem participou, queria saber bem claro, então quando eu tomei ayahuasca (uma planta que gera efeitos alucinógenos e que é usada na Amazônia por suas propriedades curativas) me concentrei e vi o meu pai, assim igual que você estava em pé. Chegou perto de mim, me tocou e me disse: ‘Não chore, já era para eles terem me matado faz tempo’. Eu perguntei: ‘quem são?’. Ele mesmo me disse: ‘Senhor Eurico e seus filhos estariam implicados. Só isso me respondeu”, lembra Diana, a filha do assassinado Jorge Ríos.

Edwin Chota e Jorge Ríos tinham sido ameaçados de morte em várias oportunidades. Uma dessas ocasiões ficou registrada em uma denúncia na Procuradoria de Ucayali em abril de 2014. O líder da comunidade garantiu que depois de um operativo que imobilizou a madeira extraída ilegalmente pela empresa Forza Nuova E.I.R.L., seu representante Hugo Soria Flores o ameaçou e Jorge Ríos garantiu que “um sawetino ia morrer”.

Alguns documentos do expediente fiscal ao que teve acesso Convoca.pe esclarecem sobre o motivo do crime. Na disposição superior Nº 037-2018 da Procuradoria aparece que o Terceiro Juizado de Investigação Preparatória, presidido pela juíza Melina Elizabeth Díaz, argumentou que “é possível que no presente caso, os assassinatos tenham tido como objetivo o ocultamento de um delito continuado (assassinato para ocultar outro delito), entre eles, o tráfico ilícito de madeira e toda a organização criminal detrás dela”. Esta situação não foi levada “em consideração pelo procurador encarregado do caso”, enfatiza a juíza.
 
— Por que a Procuradoria Geral ordena corrigir a sua acusação? Perguntamos ao procurador Julio Reátegui, quando o encontramos em Pucallpa.

Moradia típica de uma das famílias da comunidade ashaninka de Saweto, na região Ucayali. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

—Claro, ele (o procurador geral) considera que há uma questão de autoria mediata, que há um autor intelectual detrás, ele considera que isso pode ser provado, eu considero que não (…) Eu penso que essa acusação não vai chegar a nenhuma parte, processualmente falando.

Enquanto isso, na espessura da selva, a insegurança para as mulheres líderes e sobreviventes de Saweto continua. O desmatamento ilegal não se detém.

III. A ameaça continua


Um mapa da perda de cobertura florestal até 2016, elaborado por Rainforest, revelou que uma concessão florestal ao norte da comunidade, San Jorge E.I.R.L, estava cortando árvores além dos limites da sua área.

“Há madeireiro ilegais lá, o nosso território é grande (…) Eles estão lá no fundo (…) mas eles querem mostrar que somente nesse lado estão trabalhando, não por aqui”, adverte Karen Shawiri, a atual chefe da comunidade e irmã de Ergilia por parte de mãe. 

Karen Shawiri, chefe da comunidade de Saweto. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

Karen Shawiri, de 28 anos, pele morena e cushma (roupa típica) marrom, entende que a sua responsabilidade é servir a sua gente, sair do povoado somente quando for necessário, chegar com resultados para a sua comunidade, lutar por seus bosques e delegar funções às suas outras companheiras.

—Este cargo é muito forte para mim (…) Temos que lutar para poder estar dentro da nossa comunidade tranquilos, unidos, alegres— diz Karen.
— Contra quem vocês têm que lutar?
—Contra os madeireiros ilegais –responde para logo pedir o apoio das autoridades–. Não é porque somos fronteiriços que eles vão nos esquecer.

Convoca.pe teve acesso a um mapa analisado pelo Serviço Nacional Florestal e de Fauna Silvestre (Serfor) com imagens Planet de dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, que revelam pontos de desmatamento e possível extração ilegal no território de Saweto. Mas é preciso uma visita de campo das autoridades para conhecer a dimensão desta ameaça. Através do seu escritório de Comunicações, Osinfor também foi consultado em várias ocasiões para esta reportagem sobre os últimos trabalhos de supervisão realizados nas concessões florestais ao redor da comunidade de Saweto depois do assassinato dos quatro líderes ashaninkas, mas não houve resposta.

Além de liderar a luta da sua comunidade, as mulheres de Saweto se preocupam ao mesmo tempo pelo cuidado dos seus filhos em casa. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

A falta de segurança invade o território de Saweto. Os nativos contam que o número de trabalhadores na extração de madeira é impreciso. Alguns se aventuram a calcular que superam os 30 madeireiros, todos com machado ou alguma arma de fogo. Se os homens de Saweto chegam a estes setores para supervisar, preferem ignorar situações suspeitas por segurança e medo. 

“É o medo. Às vezes quando veem que estão cortando as árvores dentro da comunidade não dizem nada e, se alguém diz algo, a outra pessoa responde: ‘Eu vou te matar, você é um fofoqueiro que vai avisar lá’ [para as autoridades]”, conta Karen Shawiri.

Eles são madeireiros que vêm do outro lado, do Brasil, vêm nos ameaçar; fazem suas coisas e vão embora

- Milton Vásquez, morador de Saweto

Milton Vásquez tem 25 anos, é moreno e de estatura mediana. Ele senta e escuta na Casa Comunal de Saweto, junto com alguns homens que observam calados a reunião da diretiva presidida por mulheres. Ele é um dos poucos homens que assumiu um cargo de apoio como presidente da associação de pais de família da escola de ensino fundamental.
 
Vásquez diz que apesar das ameaças e que são apenas uns 20 homens, eles cuidam o bosque. Mas do outro lado, “os madeireiros que vêm do Brasil são mais”. “Ameaçam, cortam as árvores e vão embora. E quando reclamamos eles vêm até a sua porta, e podem nos matar. Às vezes procuramos o que comer, o que pescar, mas lá na mata, eles podem nos fazer uma emboscada”, adverte.

A cada três meses, cinco homens que temem morrer fazem rondas de proteção do território de Saweto. Mas nem sempre é possível. Na última vez que viajaram até o limite dos seus terrenos foi em outubro de 2018. “Não é sempre porque não temos gasolina. São dois dias de viagem de bote até o limite das nossas terras, caminhando é uma semana, e para voltar é outra semana. É longe”, descreve Vásquez. Mas além disso são aproximadamente 80 mil hectares de território que temos que vigiar.

O som das máquinas pesadas que levam os troncos produto do desmatamento espanta a todos. Até os animais que os moradores da comunidade caçam e comem tiveram que fugir para bosques mais seguros. “O animal ficou com medo [prevenido], mas antes eram bem mansinhos como uma galinha. Agora os animais te veem, e fogem, correm (…) Antes aqui havia bastantes peixes, desde que há madeireiras todos os animais terminaram fugindo, foram para longe”, narra Guillermo Arévalo, irmão do líder assassinado Jaime Arévalo, junto com Roger Shawiri, pai da chefe da comunidade, Karen Shawiri. Os homens e mulheres de Saweto são uma só família de sobreviventes.

IV. Guardiãs do bosque


É meio-dia de quarta-feira 6 de fevereiro de 2019. Na Casa Comunal de Saweto se prepara o almoço, se comerá sajino (porco selvagem) neste povoado onde alguma vez bebeu masato, comeu, arrumou sua cama e criou os seus filhos o ex-chefe da comunidade, Edwin Chota. O conselho diretivo e os moradores se reúnem para conversar sobre o futuro e sobre o que estão precisando.
 
Ergilia Rengifo López, uma mulher de 1.60 metros de estatura, pele morena e cabelo preto ondulado, conta que pela tragédia de Saweto ficou viúva com nove filhos. Ela não sabe qual é a sua idade porque garante que os registradores anotaram mal a sua data de nascimento mesmo que o seu Documento Nacional de Identidade (DNI) revela que tem 42. 

As viúvas de Saweto não abandonam a sua luta, mas isso não implica estar para sempre de luto. A vida continua. Ergilia Rengifo López tem um novo companheiro há dois anos. Julia Pérez tem uma menina com o seu novo esposo, junto com os outros três filhos concebidos com Edwin Chota. Lita Rojas sempre viaja para a comunidade de Apiwtxa onde os seus pais moram. E a última, Adelina Vargas, que agora mora em outro lugar longe de Saweto mas na mesma região amazônica.
 
Há cinco anos do assassinato dos líderes do povoado, Ergilia confessa que esse episódio doloroso lhe deu um impulso para buscar justiça para os seus e concluir, sem saber ler nem escrever, as gestões que tinha iniciado Edwin Chota para Saweto: o título da comunidade e a antena para a telefonia móvel.

Karen Shawiri diz que seguirá no cargo até quando puder porque escutou rumores de que querem acabar com a sua vida.

O posto policial mais próximo está localizado em Putaya, um povoado que fica uns quinze minutos de barco pequeno, rio abaixo. Lá existe uma entrada que leva até a guarita de controle de trânsito fluvial. Até este lugar chegou Convoca.pe, onde comprovou que nem sempre este posto de controle está resguardado por efetivos policiais.

O posto policial em Putaya, que fica mais perto da comunidade de Saweto, estava sem policiais quando a equipe de Convoca.pe chegou ao lugar. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

Margoth Quispe, da fundação Rainforest e ex-defensora do povo em Ucayali, alertou a Polícia desta situação. Aproximadamente às 5 e 30 da tarde da última quarta-feira 6 de fevereiro, os policiais chegaram na Casa Comunal de Saweto para deixar constância que sempre estão alertas para resguardar a comunidade. Mas Karen Shawiri deu uma versão diferente.

— Os senhores da Polícia acompanham para fazer as rondas de vigilância?
— Não, não nos acompanham. Estão no posto policial aqui perto [quinze minutos], em Putaya.
— E eles resguardam, lá e aqui?
— Não resguardam, não resguardam. Acaso estão em sua guarita de controle? 
— Quando vocês recebem ameaças, eles recebem suas denúncias?
—Sim, dizem que passam o informe para a Procuradoria. Há pouco aconteceu um caso, viajarei a Pucallpa para ver, para confirmar bem, para ver se estão fazendo seu trabalho.

A Polícia se comprometeu nessa visita a colaborar todos os domingos, compartilhar com Saweto seus galões de gasolina para que os moradores possam navegar até os marcos da fronteira e proteger seus terrenos. Esse foi o compromisso até o fechamento desta reportagem.
 
O diretor da Décima Terceira Macrorregião de Ucayali da Polícia Nacional do Peru, o general Miguel Fernando Lostanau Fuentes, menciona que existe pessoal policial patrulhando durante as 24 horas do dia. “Usamos embarcações da Marinha ou do Exército que pode estar na zona, há uma presença do Estado, em alguns lugares onde está o Exército e a Marinha mas não vou afirmar que é um 100%”, admitiu.
 
Margoth Quispe menciona que “o posto policial de Putaya é a única instituição que controla e resguarda a segurança” em Saweto. Por isso é importante que cumpra com o seu trabalho. “Enquanto o Estado não tiver presença permanente na zona fronteiriça cercada pelo crime organizado, esta situação de perigo para os moradores de Saweto vai continuar”.

As mulheres da comunidade assumem hoje duas funções, são líderes e chefes do lar

- Margoth Quispe, ex defensora do povo de Ucayali e advogada da fundação Rainforest

A ajuda para Saweto foi colocada novamente à prova no último 8 de abril com o desaparecimento de quatro crianças da comunidade. Depois de uma semana elas foram encontradas por uma equipe especial integrada pela Polícia Nacional do Peru, os nativos e a Marinha. Nesses dias, Saweto voltou a chamar a atenção da tribuna pública por causa de uma possível desgraça, mas agora tudo voltou novamente ao seu estado habitual: o esquecimento.

A comunidade de Alto Tamaya – Saweto não está segura: tem um território titulado em duas partes: de 64 mil 432.49 hectares de selva (título de propriedade A) e 13 mil 696.73 hectares (título de propriedade B), que não estão totalmente resguardadas. Além disso, vive sob carências e promessas que não são cumpridas.

V. O plano inconcluso


“Talvez alguém vai ter que morrer para que nos escutem”, advertiu alguma vez Edwin Chota. 

E foi assim. Na primeira semana de setembro de 2014, a morte dos quatro dirigentes de Saweto foi a notícia que deu a volta ao mundo. O caso desencadeou uma reação do então presidente Ollanta Humala que não se esperava. Ergilia Rengifo lembra que somente “depois que foram assassinados os dirigentes, o governo chegou para nos apoiar, antes não”. 

Ergilia visita as construções que o Estado executou segundo um Plano de Ação, que foi liderado pela Presidência do Conselho de Ministros, a cargo de Ana Jara em 2014 e que foi assumido por Pedro Cateriano em 2015.
 
No Plano de Ação – Saweto, onze ministérios identificaram as necessidades da comunidade nativa e se comprometeram a ajudá-la desde o último semestre de 2014 até 2015.
 
Durante a nossa visita, a primeira construção que ressalta de todas as que foram feitas com madeira, é o armazém, cujo orçamento supera um milhão de soles (uns 300 mil dólares) e permitirá que diversas instituições do Estado tivessem escritórios neste lugar para atender as necessidades de Saweto. Para 2018 devia estar operativo mas Ergilia Rengifo nos mostra que o teto tem calhas quebradas ou torcidas, o piso registra rachaduras, as paredes abrigam colmeias de vespas, musgo, formigas e até morcegos. O tanque de água está enferrujando, enquanto que o tanque subterrâneo está cheio de mato. Dentro do armazém, há colchões sujos. “Deixaram assim, não terminaram, pior que morreu o engenheiro que estava encarregado da obra”, garante Karen Shawiri, chefe da comunidade.

Este armazém foi construído como parte de um plano de ação do governo para atender as necessidades da comunidade de Saweto. Mas ainda não funciona. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

O Ministério de Desenvolvimento e Inclusão Social (Midis), que herdou a construção do armazém, informou a Convoca.pe que houve “um atraso importante por causa do falecimento inesperado do supervisor de obra (por motivos alheios ao projeto) em outubro de 2018”.

Um armazém nos setores mais afastados do país deveria garantir que os programas sociais e benefícios estatais cheguem efetivamente nas comunidades andinas ou nativas. Porém, em Saweto a obra está construída somente em 70 por cento, segundo o Midis, porque “é uma zona que fica longe e pela sua particular condição climática e geográfica”. 

Ergilia, nossa guia, nos leva até o pântano da comunidade: um riacho do qual bebe e tira água com um prato para refrescar a cabeça. “Daqui bebemos água”, me diz. Ao mesmo tempo, o masato (bebida tradicional) que a anciã da comunidade, Teresa López, mãe de Ergilia e Karen, contém a melhor das mandiocas fermentadas sawetinas e talvez a pior amostra de um riacho com águas sujas. “Nem sempre é limpo, mas o único que nos resta é beber esta água”, diz Karen.

Os “pântanos” também são usados para lavar roupa, as panelas e os pratos, para lavar-se, para tomar banho. Em Saweto não existe água potável. Mesmo que em 2010, Edwin Chota conseguiu junto à Municipalidade Provincial de Coronel Portillo uma caixa d'água elevada que se conecta com duas pias, uma no jardim da infância da comunidade e outra pia no colégio de ensino fundamental, as duas estão deterioradas, enferrujadas e estão com musgo. Não funcionam.
 
“O reservatório para água Rotoplas há anos que também não funciona”, adverte Julia Pérez.

Ergilia Rengifo mostra o estado de deterioro do armazém de Saweto que ainda não está operativo. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

O Ministério de Vivienda, Construcción y Saneamiento se comprometeu a “consertar as duas pias” que tem Saweto, construir uma planta de tratamento de água, consertar os tubos e “adquirir um sistema de cloração para desinfetar a água e evitar infecções por contaminação”. Mas ainda não se concreta.

Não há luz elétrica. Os sawetinos vão dormir com o pôr do sol, às 7 da noite. Às vezes ficam acordados somente para ver as mensagens nos seus celulares com baterias carregadas pelo gerador elétrico alimentado com um galão de gasolina. Também há painéis solares, mas demoram entre dois a três dias para carregar uma porcentagem mínima.

Vista do interior do armazém que mostra o estado de abandono. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

Conseguir luz por doze horas custa caro: meio galão de gasolina te permite carregar com o gerador elétrico quatro celulares com muita sorte. Cada gota de gasolina é como cada gota de água, muito bem cuidada na comunidade. O preço por galão de gasolina chega a custar 35 soles (10.7 dólares) se vier de Putaya, apesar de ser uma população vizinha. Só em Pucallpa pode ser comprada por 10 soles (3 dólares) o galão mas para isso precisa viajar três dias, em média. 

De acordo com o compromisso do Ministério de Energia e Minas, deveriam ter instalado uns 1,000 sistemas fotovoltaicos nas moradias comunitárias, com um investimento referencial de um milhão de dólares em todo o distrito de Masisea, onde fica Saweto. Mas até agora isso não aconteceu. Os homens, mulheres e crianças da fronteira dormem cedo porque na comunidade a única fonte de luz é o sol e, por hoje, já se apagou.
 
Voltar descalços à noite é perigoso. A chefe Karen Shawiri acaba de furar a planta do pé com uma farpa. A dor vai durar a noite inteira não há comprimidos de ibuprofeno na comunidade, apenas uma caixa de enalapril de 10 miligramas para pressão alta e que está no armário cheio de musgo escuro no único estabelecimento de saúde de Saweto.
 
O posto de saúde sobrevive à chuva e às traças. “Se queremos ser atendidos em algum caso de emergência temos que ir ao posto de saúde de Putaya, aqui não podemos”, garante Ergilia Rengifo. Mas Saweto tem uma relação tensa com esta comunidade vizinha: de acordo com testemunhos dos moradores, os implicados no assassinato dos quatro líderes ambientais vivem ou têm vínculos com esse povoado.

O território da comunidade de Saweto está em constante ameaça pelos traficantes de madeira. Foto: Anthony Quispe / Convoca.pe

O Ministério de Saúde sugeriu melhorar os aparelhos e a mobília do posto de saúde da comunidade, além da realização de sete campanhas de saúde entre 2014 e 2015, com um orçamento referencial de 112 mil soles (uns 34 mil dólares). Mas o problema ainda continua. Os moradores de Saweto têm que viajar durante 15 minutos com um barco pequeno até as margens de Putaya ou, se o caso for muito mais grave, navegar três dias até Pucallpa na época da chuva. 

Os idosos da fronteira dizem que precisam de um posto de saúde em Saweto. Guillermo Arévalo sofre de uma estranha doença que treme todo o seu braço. “Outro dia foi forte, estou tomando vitaminas para isso”, conta.
 
Quase anoitece nesta comunidade ashaninka. O sol vai se apagando nesta tarde de quarta-feira 6 de fevereiro enquanto Julia Pérez amamenta a última das suas filhas e sopra delicadamente seus cabelos castanhos. Veste uma camiseta azul claro que contrasta com a camiseta branca da sua pequena. As duas andam descalças, vão a todas as partes juntas. Julia não tem medo de defender os bosques, mas fica preocupada com o futuro dos seus filhos Tsonkiri, Edwin, Luz e do Kitoniro, filho de Edwin Chota e Diana Ríos. 

—Kitoniro está bem?
 
—Sim, de vez em quando vem, me visita e brinca com os seus irmãozinhos –responde Julia.
 
As crianças e os jovens que jogam futebol se divertem com os últimos raios de sol. A um lado caminha com as suas botas Kitoniro de 12 anos, vestido com uma bermuda jeans e uma camiseta verde. Tem o cabelo raspado, a pele queimada pelo sol e o sorriso amplo como o seu pai.

—Kitoniro, você sabe que o seu pai é um herói?
—Sim.
—Você quer ser como o seu pai?
—Não.
—Por quê?
—Quero ser engenheiro.

Kitoniro ainda não conhece a dimensão da luta que terminou por extinguir a vida do seu pai, Edwin Chota. Ele e a sua família aprenderam a sobreviver, a estar de pé e resistir, como as últimas árvores da fronteira.

* Esta reportagem multimídia em três idiomas e a elaboração dos aplicativos contaram com o apoio da Sociedade Peruana de Direito Ambiental (SPDA), Direito, Ambiente e Recursos Naturais (DAR) da União Europeia e da Coalizão Regional pela Transparência e a Participação.

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Editor: Milagros Salazar Herrera, Jornalistas: Anthony Quispe Oré e Milagros Salazar Herrera, Desenho: Emily Torrecilla, Desenvolvimento Web: Anthony Atauqui, Aplicações e desenvolvimento tecnológico: Elvis Rivera, Tradução: Mauricio Campos de Souza.